Acerca de
Os Fins e os Meios
Maçãs no Escuro (Dir.: Tiago A. Neves, 2024, SP)
Not Dead (Dir. Isaac Nonato, 2024, BA)
por Pedro Henrique Ferreira
A moldura narrativa de Maçãs no Escuro introduz uma equipe estrangeira que contrata os atores de uma trupe para documentarem o dramaturgo Edson Aquino, que há 35 anos põe de pé uma companhia teatral na periferia de São Paulo. Ele é supostamente alguém que teve sucesso no passado e que agora desliza em franca decadência. À partir daí, o segundo longa-metragem de Tiago A. Neves é um retrato mais ou menos ficcional que acompanha os momentos cotidianos desta e de outras figuras que orbitam o seu universo. Movemo-nos através das residências, dos espaços de ensaio, dos botecos e das caminhadas pelo centro e pela periferia de São Paulo, onde desenrolam-se demorados instantes de intimidade e trocas banais entre as pessoas que fazem parte deste núcleo. Uns sonham com uma vida melhor para si e para os filhos, outros não esperam dela mais do que um pão com média no café da manhã.
Às vezes, Maçãs no Escuro esbarra numa romantização um tanto excessiva da marginalidade e da decadência, que se revela também na forma estética do filme, por exemplo, no uso descuidado da câmera até mesmo em momentos onde ela poderia se fixar e emoldurar a ação com mais clareza e nitidez, na iluminação e no som capenga até mesmo onde este imediatismo não se justifica, no ritmo modorrento das sequências apenas como que para constatá-lo. Quando artistas marginais aproveitaram-se das técnicas mambembes, foi mais para liberar sua criatividade do que simplesmente enfatizá-las ou normalizá-las. Sua exaltação também torna-se motivo cômico ou dramático na narrativa, em uma série de cenas que às vezes beiram um fetichismo à moda João Gordo na MTV: tomar Bavária ao invés de Skol, comer baconzitos aos custos da equipe gringa, discussões sobre abrir ou não um CNPJ, o aluguel de uma mansão para uma performance coletiva que passa do horário e o caseiro vem encerrá-la, ou rodar um assalto e terminar o protagonista destemido xingando o ladrão. Em última instância, a revelação de que o que os gringos queriam mesmo era um filme acompanhando o Miguel Falabella. Tudo isto contribui para um espírito de idolatria àquele universo, que às vezes recrudesce o peso exato das adversidades que estas figuras enfrentam, as condições materiais mesmas da marginalidade que é opaca a seus sonhos que, quando surgem, produzem momentos solenes e tocantes.
Mas o mais interessante de Maçãs no Escuro não tem a ver com o cotidiano que ele registra ou encena, com os hábitos engraçados daquele grupo de artistas, e nem com as suas dificuldades materiais que enfrentam diante do mundo para subir até o palco. O que há de verdadeiramente comovente é o retrato de uma espécie de arte que, boa ou ruim (o filme está longe de querer atestar o juízo de valor, e se o faz, faz parecer aquilo tudo um bocado ruim), mobiliza a vida de um conjunto de pessoas, de uma certa cena teatral que orbita em torno de Aquino e do seu galpão e que dá sentido às suas vidas pessoais. Ele é o elixir para o vazio e a solidão, como era fazer um filme sem recursos a redenção do luto para a Edna de Cervejas no Escuro e, também, para a história da cidade pernambucana. Ser um gênio ou uma besta, pouco importa. Em momento algum o filme se esforça por justificar a genialidade de Edson. Mais do que ser bom ou mal artista… muito mais do que fazer da biografia de um artista qualquer esforço de atestado da genialidade (ao contrário, Edson Aquino diversas vezes se mostra um encenador mais ou menos medíocre, que faz toda a criação parecer randômica), o valor da arte está naquilo que ela significa para quem a produz, e que às vezes é a sua razão mesma de viver - o que lhe confere um valor absoluto e incomensurável, principalmente quando falando de moradores periféricos. É por isto que, quando confrontado com a reação negativa do público - por mais que possamos até concordar com eles -, o personagem manda todo mundo à merda. A ética de Maçãs no Escuro dá continuidade à do filme anterior do cineasta, e tem a ver com este sentido próprio e pessoal da criação do artista marginal. Uma onde não é apenas que os fins não justificam os meios: ao contrário, são os meios é que justificam o fim, porque para quem faz, a arte é a própria cura.
O baiano Not Dead tem a mesma índole. Aborda também uma cena artística que se desdobra em uma região periférica, o universo punk que girava em torno de uma livraria que dá título à obra na década de 1980. O longa-metragem também opta por um retrato cotidiano, embora o faça de uma forma documental um tanto mais tradicional e menos ficcionalizada, pondo os personagens em contato entre si e rodando diálogos que se transformam num compêndio de memórias, uma operação de resgate daquela experiência. A figura de Piolho ajuda a conduzir os encontros com uma série de figuras diferentes que habitavam o rolê. Neste sentido, o filme opta por lidar com o presente daqueles que fizeram parte da ‘cena' no passado - um que se tornou marceneiro, outro auxiliar de libras e audiodescrição, outro que trabalha fazendo cerveja artesanal ou outra que tem um refeitório vegano - afim de ver em que medida os ideais que mobilizaram os encontros em torno das rodas de punk seguem acesos e vivos no presente, o que levaram de um momento de suas vidas para outro que se transformou. Neste sentido não é um filme sobre decadência tanto quanto sobrevivência.
Mas há um paradoxo nisto. Porque se em alguma medida o filme até parte para um esforço de reavivamento, apostando em cenas como a da preparação de uma festa ou a da banda empreendendo um retorno, a maior parte do tempo ele é um filme sobre nostalgia. "Quem me vê hoje não imagina que eu fui ‘punk’” parece o diapasão repetido algumas vezes, numa reafirmação da distância entre a realidade de suas vidas e todo o ideário que os motivou no passado, os resquícios de uma ideologia punk e a aplicação de suas teorias anarquistas tipicamente associados ao movimento dos anos 1980 - autogestão, construção de autonomia sob as bases de ajuda mútua, a filosofia do DIY (do it yourself), a revolta contra o sistema opressor do capitalismo e do modelo político-estatal, etc. O que restou foi mais talvez uma atitude, uma chama ou um brilho no olhar de cada um que viveu aquilo. Assim, Not Dead titubeia à cada instante entre passar o atestado de óbito ou exaltar o que restou, filmar um diálogo do encontro entre três amigos no pequeno boteco onde estão solitários ou rodá-lo do outro lado da rua, de dentro de uma sonora igreja evangélica, revelar e reavivar o entusiasmo do que restou pondo a banda para tocar ou mostrar a fachada da livraria com a palavra “Not” esmaecida, ficando mesmo só o “Dead”.
E no entanto, não há bem um tom derrotista. Ainda que às vezes Not Dead reduza-se a um manual de instruções do punk e do anarquismo, o que o filme de Isaac Donato realmente constata e tem de mais interessante parece acontecer um pouco à revelia: uma certa questão econômica e material, a realidade econômica periférica que força suas vidas para longe da prática ideológica que eles defendem. O grau de autonomia que podem desenvolver está no limiar de um pequeno negócio, da rejeição aos patrões assumindo-se como um motoboy autônomo, do fortalecimento mútuo dos empreendimentos comunitários em resistência aos grandes negócios, etc. Se de um lado, a maneira um tanto burocrática em que o filme se desenrola atrapalha um pouco o carisma dos personagens que o documentário tem em mãos, por outro o que dá alguma graça a Not Dead é a evidência deste contraste. É um pequeno feito, mas está na contra-mão de uma boa parte do cinema brasileiro contemporâneo que cada vez mais esquece-se da importância de enraizar os personagens nas condições onde vivem e tornar isto parte ativa de suas descrições, revelar o campo material ao invés de fazer de tudo e todos grandes figuras abstratas.
Revista Abismu - Janeiro, 2024